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EXPOSIÇÃO

As marcas simbólicas da diáspora

boricua no espaço público de 

Prefácio

Dr. Alessandro Filla Rosaneli contou-me histórias de suas impressões iniciais ao viver em Cambridge, Massachusetts, durante sua estada de seis meses como membro do Centro de Estudos Latino-Americanos, Caribenhos e Latinos da Universidade de Massachusetts, Amherst. Ele me contou que inicialmente ficou impressionado com a asseio da vida fora de seu apartamento, a limpeza da rua, o extremo cuidado em comunicar as futuras mudanças na paisagem por meio de pequenos postes de madeira que isolavam seções dos canteiros de rua com fita colorida, o relativo silêncio de pedestres. Ele ficou impressionado com a quantidade de infraestrutura, acordo social e contenção coletiva necessários para manter estas ruas como tal, dia após dia. No estudo a seguir, sobre a pequena cidade pós-industrial de Holyoke, que fica cerca de duas horas a noroeste de Cambridge, o Dr. Filla encontra uma urbanidade radicalmente diferente na Nova Inglaterra; uma diversidade étnica e racializada que reflete a diáspora dos porto-riquenhos ao longo do último século ou mais. Uma cidade dividida que também denuncia assimetrias sociais e retrocessos ao prometido sonho americano e se torna significativamente mais interessante do que a sua vizinha mais rica e socialmente privilegiada. Ele percebe que sua admiração inicial com as ruas de Cambridge esconde sua falta de vitalidade em comparação com a rua principal de Holyoke, com seu envolvimento vibrante com o espaço público.

Nós, da Universidade de Massachusetts, Amherst, tivemos o prazer de receber este ano o Dr. Alessandro Filla Rosaneli, professor da Universidade Federal de Curitiba, Brasil. Desnecessário dizer que o nosso estimado colega se tornou meu amigo e interlocutor intelectual. Juntamente com colegas do Amherst College e de forma interdisciplinar, iniciamos um diálogo sobre espaço público, diáspora, arquitetura e política cultural de grupos minorizados nos Estados Unidos e na América Latina, que esperamos continuar através de colaborações hemisféricas. Evidentemente, em seu provocativo projeto sobre o espaço urbano que se segue estão a experiência do Dr. Filla, sua generosidade de tempo e espírito, e seu olhar atento sobre nossa amada cidade vizinha, Holyoke, Massachusetts, EUA. Somos gratos ao Dr. Filla por seu profundo interesse no talento, capacidade intelectual, coração e resiliência de uma das comunidades Boricua mais impactantes nos Estados Unidos.

Dr.ª Stephanie Fetta

Professora Associada de Literatura e Cultura Latina/o/x

Presidente do Conselho das Cinco Faculdades Latino/Latino-Americanas

Membro do Comitê Executivo e Diretora Ex-Officio da Universidade de Massachusetts,

Amherst Center for Latin American, Caribbean, and Latino Studies

17 de outubro de 2024

Quando eu fui provocado pela minha amiga Professora Stephanie Fetta para me atentar sobre Holyoke (uma cidade no interior do Estado de Massachusetts) no período em que fui professor visitante na University of Massachusetts em Amherst, eu realmente não esperava ser tão profundamente tocado. Como nunca tive qualquer contato com essa localidade antes, procurei informações em variados locais e consegui construir uma primeira impressão, remotamente. Assim, já estava preparando o olhar estrangeiro, o necessário estranhamento, para investigar essa específica paisagem, como tantas vezes tenho feito. Mas fui tomado de uma enorme surpresa assim que adentrei em Holyoke pela primeira vez, em maio de 2024 - nunca tinha sentido aquelas sensações: um misto de desconforto, desorientação e incompreensão.

 

Holyoke tem um passado industrial marcante para a história norte-americana, especialmente por estar na Nova Inglaterra e às margens do caudaloso Rio Connecticut. Foi uma das primeiras cidades industriais planejadas dos EUA e, em dado momento do século XIX, foi o centro de produção de papel do mundo e, por isso, apelidada de “Paper City”. Essa industrialização motivou várias levas de imigração, na qual irlandeses, canadenses, poloneses, alemães, escoceses, dentre outros, foram construindo suas vidas pela região em plena Revolução Industrial. Contudo, com o final da Segunda Guerra Mundial, dois movimentos iriam mudar a sua história: o primeiro adveio da decadência da força industrial que até então sustentava a economia de Holyoke, fazendo com que muitos edifícios industriais fossem esvaziados e, posteriormente, abandonados. O segundo se iniciou com o programa governamental para alocar população estrangeira em áreas agrícolas, o que iniciou um fluxo de migração estrangeira e permitiu que porto-riquenhos viessem trabalhar na região. Atualmente, Holyoke tem a maior concentração de boricuas (como os porto-riquenhos se autonomeiam) fora da ilha ocupando especialmente essa região histórica da cidade (Triverdi, 2017). Esse passado continua latente pois o próprio Estado de Massachusetts a considera uma “gateway city”, quer seja, uma cidade que possui um passado industrial que não mais se conecta às expectativas do mundo contemporâneo e que precisa se reinventar economicamente. E foi esse legado social e construído que me surpreendeu quando estive pela primeira vez em Holyoke e que aos poucos foi cedendo e permitindo que eu adentrasse nesse universo desconhecido para aprender com essa paisagem.

     FIG1: edifício industrial reconvertido em Holyoke, às margens do canal construído na fundação da cidade  

Este projeto se intitula “As marcas simbólicas da diáspora boricua no espaço público de Holyoke” e lida com os sinais que emanam da paisagem urbana conformada pelo espaço público. Ele foi realizado na porção central e adjacências de Holyoke, especialmente na Main Street (FIG2). O objetivo foi compreender como a diáspora de porto-riquenhos tem se manifestado no espaço público e contribui para tornar mais forte a ligação dessa população com sua terra natal (FIG3).

                                                  FIG2: área central de Holyoke e sua vizinhança, Massachusetts (dentro da linha vermelha)  

                                                                                                                                                                             Fonte: Google Maps 

Comparada com a média geral do Estado de Massachusetts (13%), a cidade de Holyoke tem uma pontuação notável: a maior parte da sua população residente é formada por latinos (51%), como mostra o Censo de 2020 (Grandberry & Agarwal, 2022). Esses autores ressaltam que o município passou por um declínio populacional (principalmente indicados como brancos) na última década, embora os latinos tenham permanecido estáveis.

Este cenário demográfico converte a comunidade da diáspora porto-riquenha em Holyoke num interessante caso de estudo sobre a dimensão simbólica do espaço público.

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FIG3: mural do artista David Flores instalado nas paredes do estacionamento da Prefeitura de Holyoke depois de ser removido de seu local original, um edifício privado, em razão de uma contestação de sua representatividade, claro indício das dificuldades advindas da transição demográfica.  

O espaço público é uma categoria analítica que desperta interesse contínuo nas disciplinas que tratam dos estudos urbanos. Dada a natureza social dos seres humanos, a presença de um espaço comum nas aglomerações urbanas é geográfica e temporalmente inequívoca, como Kostof (1991) já afirmou. O espaço público tem sido considerado uma “bússola ética visível da sociedade” (Mitrasinovic e Metha, 2022, tradução livre) e um “conceito chave” (Kohn, 2004, tradução livre) para lidar com as questões urbanas contemporâneas.

 

Assim, entende-se que os estudos sobre o espaço público são cada vez mais relevantes, pois contribuem para a compreensão do cotidiano urbano e permitem investigar os avanços, conquistas e desajustes de uma determinada sociedade. Contudo, o espaço público estabelece-se como uma categoria de múltiplas compreensões, e diferentes campos disciplinares o exploram e, por isso, acaba por ter “significados muitas vezes ambíguos, complementares ou controversos” (Innerarity, 2010, p. 10).

 

A presente exposição faz uma escolha deliberada de análise, observar a dimensão simbólica. Essa opção se justifica pela incisiva contribuição para a compreensão de uma das essências constitutivas de um espaço público, ou seja, aquela que se conecta com o potencial de abertura, de pertencimento, que o espaço pode (ou deve) oferecer; de como pode abrigar livremente diversas manifestações, comunicações, experiências. Cassirer (2014 [1944]) destaca que “o homem (sic) é um animal simbólico” e que a consciência humana é simbólica por natureza. Este fato permite defender o espaço público como um elemento da paisagem urbana carregado de significados, muitos concebidos como representação de determinados grupos sociais (Cosgrove, 1998), que afastam ou acolhem as pessoas. Pode-se afirmar que esta perspectiva analítica tem ligações evidentes com o conceito de paisagem, especialmente quando esta é caracterizada como um “meio representacional” (Doherty e Waldheim, 2015). Na verdade, a dimensão simbólica do espaço público está implícita e, por isso, requer um olhar atento para ser captada pois é uma maneira especial de identificar as dimensões ocultadas do cotidiano.

 

Essa chave de leitura também permite uma especial aproximação com o que tem se chamado de “cidade dos migrantes”. Amin (2018) ao expor que migrantes tem enfrentado extremas fragilidades, hostilidades e suspeição, diariamente e em várias cidades pelo mundo, salienta que a paisagem urbana é ativa na construção de lugares e no direcionamento corporal das pessoas.

 

Ou seja, a dimensão simbólica do espaço público emerge como um importante “árbrito” das mediações da coletividade, cujas mensagens podem contribuir para a conquista de maior bem-estar (ou não) para todos.

Para melhor abordar a dimensão simbólica do espaço público da porção central de Holyoke, algumas viagens ao campo foram realizadas em maio, junho e setembro de 2024, caminhando de manhã à noite, utilizando uma câmera profissional, um celular e um caderno de campo. Pretendeu-se registrar marcas físicas na paisagem urbana para entender melhor como o espaço público pode ser palco para disputas, contestações e afirmações.

As visitas permitiram observar que existe uma divisão bem visível da paisagem na região estudada, com destaque para dois espaços públicos dentre todos os visitados: a Main Street e a High Street. Em ambas se concentram um conjunto de marcas que permitem confirmar o que Hall, Finlay e King (2018, p. 465) definem como “migrant streets”: “ruas de migrantes são tudo menos a aquiescência às estruturas singulares da assimilação nacionalista ou da coesão comunitária, [...] (concentram) uma capacidade caprichosa de grupos marginalizados se organizarem de forma variada, uma acomodação de uma série de subjetividades”. Não são expressões simples de um certo “conforto” no exterior; há combate, disputa no e pelo espaço. Mas há uma distinção entre ambas as ruas: enquanto a High Street expõe sinais de uma migração ampla, a Main Street abriga as lutas dos porto-riquenhos e isso pode ser percebido observando a fachada das lojas e o chão.

clique nos quadros para acessar as fotografias

Tal fato foi determinante para se concentrar a investigação nessa específica rua, a  Main StreetDe fato, ela é reconhecida pela comunidade de Holyoke como uma expressão da cultura boricua e o projeto “El Corazon de Holyoke” (https://nuevaofholyoke.orgtem sido proeminente nessa construção espacial.

FIG4: Um dos muitos murais espalhados pela área central de Holyoke, que bem sintetiza a afirmação da identidade boricua na cidade.

Esse pesquisador-caminhante em ação no espaço público de Holyoke.

Por Alessandro Filla Rosaneli

AMIN, A. City of Migrants. (2018). In: HALL, S.; BURDETT, R. The SAGE Handbook of the 21st Century City. London: SAGE.

CASSIRER, E. (2014 [1944]) An Essay on Man: An Introduction to a Philosophy of Human Culture. Garden City, New York: Doubleday & Company, Inc.

COSGROVE, D. (1998) A Geografia está em toda parte: cultura e simbolismo nas paisagens humanas. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDHAL, Z. Paisagem, Tempo e Cultura. Rio de Janeiro: EDUERJ.

DOHERTY, G.; WALDHEIM, C. (ed.) (2015) Is Landscape...?: Essays on the Identity of Landscape. 1st Ed. New York: Routledge.

GRANDBERRY, P.; AGARWAL, V. (2022). Latinos in Massachusetts Selected Areas: Holyoke. University of Massachusetts Boston. ScholarWorks at UMass Boston.

HALL, S.; FINLAY, R.; KING, J. The Migrant Street. (2018). In: HALL, S.; BURDETT, R. The SAGE Handbook of the 21st Century City. London: SAGE.

KOHN, M. (2004). Brave New Neighbourhoods: The Privatisation of Public Space. London: Routledge.

INNERARITY, D. (2010) O novo espaço público. Lisboa: Texto Editores, 2010.

KOSTOF, S. (1991) The City Shaped – Urban Patterns and Meanings Through History. New York, Bulfinch Press.

MITRASINOVIC, M.; METHA, V. (2022) Public Space Reader. 1st Ed. New York: Routledge.

TRIVERDI, S. (2017). A Tale of Two Cities: Language, Race, and Identity in Holyoke, Massachusetts. Purdue University ProQuest. Department of Anthropology.

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